quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Sou um aglomerado


De histórias, pensamentos e emoções. Meus e dos outros que se cruzam comigo.






terça-feira, 28 de novembro de 2017

Ninguém merece...

Ontem fui ver a minha amiga C. ao hospital. Tenho ido sempre que posso desde que foi internada no dia 7 de Novembro nos cuidados paliativos. Ontem quando cheguei para a visitar, acompanhada de outra amiga dela, encontramo-la desesperada e cheia de dores. Tinha o telefone na mão, e queria ligar à médica oncologista. Desorientada com as dores, não conseguia encontrar o número na agenda do telefone.
"-Ainda bem que chegaram, ainda bem que chegaram. Preciso de falar com a minha médica, ela prometeu-me que eu não ia ter dores e eu estou cheia de dores..." Deu-me o telefone, encontrei o número e ela ligou. A médica atendeu:
"- Doutora, ajude-me por favor... a doutora prometeu-me que eu não ia ter dores e eu estou cheia de dores..." - as lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo e eu continha a custo as minhas.
Chamamos a enfermeira e em pouco tempo a C. estava rodeada pelo médico, enfermeiro, auxiliar. Passaram-na do cadeirão para a cama e ajustaram a dose. A morfina ainda demorou a fazer efeito e ela cheia de dores questionava o médico: "Porque é que a eutanásia não é legal? Porque é que temos de sofrer? Doutor ajude-me, eu quero morrer! Esta dor é tão forte, esta dor é azul escura, é quase preta, doutor..." Choramingava. O médico falava com ela com voz tranquila. Ela foi-se acalmando. O médico fazia-lhe festas no cabelo, chamava-lhe "minha querida" e dava-lhe beijinhos na testa.
Há uma ternura imensa na equipa que lida com a minha amiga; das auxiliares, às enfermeiras e médicos, todos são duma generosidade emocional incrível. Não poupam nas drogas, nem no afecto.
Deixei o médico sair  e disse-lhe baixinho: "- És tramada... arranjaste maneira de dar um abracinho ao médico." Consegui arrancar-lhe um sorriso. No meio das dores, a minha amiga ainda sorri. Deixei a com a familia que tinha entretanto chegado e sai para tentar apanhar o médico no corredor. Quando o vi passar abordei-o: "- Doutor, como se chama?" Acho que, quando tratamos as pessoas pelo nome elas prestam mais atenção ao que dizemos.
"- Diego."
"- Doutor Diego, por favor ponha a minha amiga a dormir. Ponha-a inconsciente para ela não sentir mais nada, por favor."
Não lhe pedi: "Mate-a." mas acho que lhe pedi com os olhos "Ajude-a a morrer."
Há uma altura em que deixamos de pedir a cura porque sabemos que já não é possível, e passamos a pedir que a morte seja suave.

sábado, 25 de novembro de 2017

A vacina

Bati-me várias vezes com a minha oncologista sobre este tema: "Cada um de nós é um individuo único, porque é que os protocolos de quimioterapia são standard? Porque é que não é adaptado a cada pessoa? Como é que vocês sabem que isto me vai curar?"
 "Não sabemos. Sabemos que a maioria dos tumores reage a este cocktail."
"Tenho mesmo de fazer isto?"
"Tem."
E eu murmurava:"Mas eu não sou standard... eu sou... diferente..." 
Quando se inicia a quimioterapia dá-se mais um salto de fé. Acredita-se que aquilo pode dar certo. Avança-se para um tratamento que vai virar o nosso corpo e a nossa vida do avesso, sem certezas de que ele vai resultar mas, acreditanto que vai.
Pede-se a todos os santinhos disponíveis para que o cirurgião que nos operou tenha retirado o tumor e todas as metástases visiveis e invisiveis. Em grande parte dos cancros, a cirurgia é o passo mais importante; é muitas vezes a cura. A quimioterapia actua como um preventivo de reocurrência da doença. Quando ficam metásteses, por muito pequenas que sejam, dependendo do tipo de cancro e dos quimicos que existem para as controlar, o fim pode ser só uma questão de tempo.
Uma vacina personalizada que se conjuga com imunoterapia vem abrir novos caminhos muito mais amplos. A cura para alguns já não vem a tempo mas, para outros está cada vez mais perto.

  Vacina personalizada contra o cancro

domingo, 19 de novembro de 2017

Viver nos intervalos

Texto escrito a 18-11-2015, pouco depois dos ataques terroristas de 13-11 em Paris e Saint Dennis.

Sai de casa cedo. Geralmente durante a viagem para Lisboa vejo o FB e alguns grupos sobre temas que me interessam. Num grupo sobre a tiróide, alguém angustiado, partilhava que 7 anos após o primeiro tratamento com iodo, ia voltar a repetir por suspeita de metástases. Segui para a clínica onde ia fazer uns exames de rotina. Enquanto esperava a minha vez, começaram a dar nas televisões imagens de Saint-Denis. O que se passa não é muito diferente dum cancro, pensei: a França tem um cancro. O cancro é como um ataque terrorista; é inesperado, destrói vidas, destrói famílias, rezamos que acabe, queremos que passe, quando acaba sabemos que pode voltar a acontecer de novo, mas não sabemos quando, nem onde. Pode ser em qualquer lado. 

Os exames de rotina são um sufoco até a médica dizer as palavrinhas mágicas:"Não vejo nada suspeito." Sai da clínica e segui para o trabalho. No trabalho comentava-se a recuperação duma colega e um vídeo partilhado no FB, onde ela muito magra se arranjava e levantava com ajuda dum familiar. Não consegui falar muito sobre o assunto, para dizer a verdade também não quis, há dias em que uma coisa qualquer me leva a evitar diálogos quando eles envolvem a palavra cancro. Hoje era um desses dias. É a minha sanidade mental em jogo, chamem-lhe egoísmo ou o que quiserem. 

Hoje um amigo fez mais uma sessão de quimioterapia. Hoje uma amiga que já teve cancro disse-me que está com um problema de saúde e tem receio que ele possa ter reaparecido noutro órgão. Não é por ter tido um cancro que sei as palavras certas para dizer aos meus amigos. Gostava tanto de saber mas, não sei. Sei o que é a angústia, os compassos de espera, as reviravoltas... Sei o que é acordar cada dia sem saber muito bem o que nos vai acontecer, sorrir quando tantas vezes nos apetece desabar mas, cada um de nós sente as coisas à sua maneira, por isso, não, eu não sei as palavras certas para confortar alguém com cancro. Às vezes não sei sequer as palavras certas para me confortar a mim mesma. 


Hoje sinto-me tão cansada, tão cansada, mas a verdade é que já tive dias piores. O meu dia acabou com um electrocardiograma. Havia uma suspeita de que o meu coração poderia não estar a funcionar bem, mas foi falso alarme. Não sei se já disse, mas detesto exames de rotina. 


O meu dia acabou e aquilo que retive é que o cancro é como um ataque terrorista e temos de aprender a fazer como os parisienses: Viver nos intervalos.


Para a Susana, que lutou contra o "terrorismo" até  † 04-02-2016


sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Meu anjo da guarda, minha companhia...


Certa vez há uns bons anos atrás tive um acidente de carro. Um outro carro despistou-se, veio contra o meu e bateu num pneu traseiro, que rebentou. O meu carro fez piões lindos na faixa do meio da A2, com carros a passar dum lado e de outro. A cada carro se aproximava e passava por nós o meu corpo contraia-se e eu esperava pelo "bum" do impacto. "Vamos levar com outro carro em cima e vamos morrer aqui." Rezei. Fechava os olhos a cada carro que vinha em direcção a nós e rezava. Miraculosamente, a cada passagem dos outros carros, o nosso estava sempre na posição correcta na faixa de rodagem, ora virado para a frente, ora para trás. Os carros passavam e nós continuavamos a fazer piões. Quando o carro acabou de rodar ficou virado para Sul, na faixa do meio, como se nada se tivesse passado. Só um pneu rebentado acusava o acontecido.

No meio das peripécias da minha estadia nas urgências do HGO o ano passado, foi um bocadinho isso que se passou. De alguma forma, apesar dos "piões", estive sempre onde devia estar, rodeada das pessoas certas para resolverem o meu problema. Foi preciso confiar e entregar-lhes a minha vida. Essa foi a maior dificuldade que senti. Interiorizar isto "Vou ter de entregar a minha vida a estas pessoas que não conheço de lado nenhum e confiar que vão fazer o possível para eu ficar bem." Um gigantesco salto de fé. Confiei bem. Quando viram que precisavam de reforços chamaram um cirurgião que estava em casa, de folga. E ele, foi para o hospital tratar de mim. Querem melhor?

Lembro-me da anestesista me perguntar: "- Quer anestesia epidural ou geral? - Geral. Ponha-me a dormir." Pensava com os meus botões: "Se isto correr mal, se morrer, quero estar a dormir!" "- Ora, ora, afinal vêm as duas doutoras para a operar. Você é mesmo importante." Esbocei um sorriso e pensei: "- Vem as duas?! Bonito..." Adormeci a rezar: "Meu Deus entrego-me nas tuas mãos."

Hoje li num comentário do FB uma frase duma pessoa que não conheço e registei:" Anjos são isso mesmo, há aqueles que estão aqui e há aqueles que se servem dos que estão aqui." Meu querido anjo da guarda, desculpa a trabalheira! Mas olha, tens te safado bem!"


sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Positiva

"Tens de ser positiva". Ouvi muitas vezes esta frase desde que fiquei doente. Acontece que, eu sempre fui uma gaja positiva. Como diz uma amiga minha GAD! Graças a Deus. Perante a tragédia, o drama, o horror eu sou aquela que já está a pensar como é que vai fazer para dar a volta à situação. O copo para mim está sempre meio-cheio. Com um bom tinto. Assim sendo, é justo que me chamem a Miss Positividade. Onde é que isso me levou? A uma vida muito mais animada. Mas, não me impediu de ter cancro. A Miss Positividade ganhou em 2 anos, dois cancros. Nada do género "Pague um, leve dois", Foi mais "Leve dois e pague dois. Atenção que no segundo cobramos 60% de juros." Em dois anos, no jogo do Bingo dos cancros sairam-me dois números e estou-me a esforçar para não fazer uma linha.

"Tens de ser positiva que isso é meia cura". Sim, sim... não fosse a Carboplatina e o Paclitaxel, estava bem tramada. Houve também uma vez que alguém me perguntou se eu tinha mesmo de ser operada:
"-Não mas, eu não tinha nada para fazer nesse dia. Não quis perder a oportunidade de estar 7 horas numa cirurgia, fechar as urgências, ter 5 ou 6 médicos a olhar só para mim. Sempre quis conhecer uma unidade de cuidados intensivos, as luzes, os bips... e depois uma semana sem comer é melhor que qualquer SPA!"
"-Ah!..."
Não me lembro de quem foi a pergunta... É a benesse da quimioterapia, esquece-se muita coisa que não interessa. Alguma que interessa também mas, isso é outra história.

O ano passado por esta altura, estava eu ocupada a ser positiva. Vejo as minhas memórias do Facebook e penso: "Que inconsciente!" Eu estava feliz. Gostava do meu trabalho, estava finalmente perto de casa e tinha descoberto um desporto que adorava. Sentia-me forte e cada vez mais em forma.
Foi nessa curva ascendente que o meu segundo cancro me apanhou. Ele estava lá, caladinho, sorrateiro, a pensar como é que havia de me matar...

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Novembro


Chegou Novembro. Este mês trás-me sempre alguma nostalgia. Aproximam-se as Festas e lembram-se os mortos. Algumas memórias trazem saudades de cheiros e sons. Era nesta altura que a minha avó fazia no forno os figos cheios - figos recheados com canela, açucar e miolo de figo, à moda da tradição algarvia - e começava o ritual das fatias douradas ao Domingo de manhã. Eu acordava com o cheiro da canela a perfumar a casa. E a cozinha era numa ponta e o meu quarto na outra. Que perfume! 
Tenho pena de nunca ter gravado a voz da minha avó. Às vezes parece que a ouço rir. A minha avó tinha um riso discreto e baixinho. Não me lembro de me levantar a voz. Ela sorria e ria. Os olhos franziam-se e ficava só uma nesga de olho azul a espreitar entre as pestanas loirinhas. Tinha a pele branquinha, branquinha, o nariz pequenino e arrebitado. Era bonita e refilona a minha avó. Tinha resposta para tudo e punha-nos na linha só com um olhar. Tenho saudades da minha avó. Tenho saudades do colo da minha avó. Todos os dias, todos os anos desde que morreu mas, principalmente em Novembro. 




quarta-feira, 11 de outubro de 2017

O sonho

Era assim que acordava, a tentar tocar-lhe. Ainda antes de abrir os olhos, esticava o braço e abria a mão…
Sabia que o encaixe iria ser perfeito, que a mão era como uma luva que assentava naquele peito.

Os dedos arqueavam-se, adaptavam-se, envolviam aquele seio. Conhecia-lhe o desenho, aquela curva que se iniciava logo acima das costelas e adivinhava o resto. Mas sempre que abria os olhos… a mão estava vazia…

Sonhava com ela todos os dias. O que o despertava era aquele jogo de limites com os quais brincavam, limites que por vezes andavam perigosamente perto, mas nunca se tocavam, num jogo consentido em que se aproximavam para depois se afastarem.

Ele gosta de a desinquietar e provocar. Não sabe porque lhe apetece tanto transtorná-la, não sabe o que vê nela, sabe apenas que ela o leva a lugares que já conheceu e onde sempre sonhou voltar.

Às vezes rouba-a dos sonhos dela e leva-a para os seus, e é nessa altura que a mão se abre, para lhe tocar.