Para a V. porque há algumas semanas atrás lhe falei desta passagem dum livro que desfolhei. E porque acho que a música que condiz com o texto é esta e ambas gostamos de Portishead.
"Ficámos calados por instantes, a ver o fogo faiscar.
- Ontem à noite, escrevi uma carta ao Pablo - disse Bea.
Engoli em seco.
- Ao teu namorado, o alferes? Para quê?
Bea extraiu um envelope do bolso da blusa e mostrou-mo. Estava fechado e selado.
- Na carta digo-lhe que quero que nos casemos quanto antes, dentro de um mês, se possível, e que quero sair de Barcelona para sempre.
Enfrentei o seu olhar impenetrável, quase a tremer.
- Por que me contas isso?
- Porque quero que me digas se tenho de a enviar ou não. Foi por isso que te fiz vir hoje aqui, Daniel.
Estudei o envelope que girava nas suas mãos como uma aposta de dados.
- Olha para mim - disse ela.
Ergui a vista e sustentei-lhe o olhar. Não soube responder. Bea baixou os olhos e afastou-se até ao extremo da galeria. Uma porta conduzia à balaustrada de mármore aberta ao pátio interior da casa. Observei a sua silhueta fundir-se na chuva. Fui atrás dela e detive-a, arrebatando-lhe o envelope das mãos. A chuva fustigava-lhe o rosto, varrendo as lágrimas e a raiva. Conduzi-a de novo ao interior do casarão e arrastei-a até à calidez da fogueira. Ela evitava o meu olhar. Peguei no envelope e entreguei-o às chamas . Contemplámos a carta a quebrar-se entre as brasas e as páginas a evaporarem-se em volutas de fumo azul, uma a uma. Abracei-a e senti o seu hálito na garganta.
- Não me deixes cair, Daniel - murmurou.
O homem mais sábio que alguma vez conheci, Fermín Romero de Torres, tinha-me explicado numa ocasião que não existia experiência comparável com a da primeira vez que se despe uma mulher. Sábio como era, não me tinha mentido, mas tão-pouco me contara toda a verdade. Nada me tinha dito daquele estranho tremelique das mãos que convertia cada botão, cada fecho éclair, em tarefa de titãs. Nada me tinha dito daquele feitiço de pele pálida e trémula, daquele primeiro roçagar de lábios nem daquela miragem que parecia arder em cada poro da pele. Nada me contara de tudo aquilo porque sabia que o milagre só sucedia uma vez e que, ao suceder, falava uma língua de segredos que, mal se desvendavam, fugiam para sempre."
Então? Fica-se ou não sem respiração? ;-)
Sem comentários:
Enviar um comentário