sexta-feira, 22 de março de 2013

Primavera


Outro dia dei por mim a fazer contas. Nunca soube de cor os teus anos. Lembro-me que vieste depois da Primavera, num dia de muito calor. Vieste não, fui-te buscar. Ouvi-te miar, um dia, quando chegava a casa ao entardecer. Miavas alto, muito alto, um miado quase histérico. Estavas no recinto duma creche, metido não sei onde. Não te via, só te ouvia e o local estava fechado. Era a caminho de casa, por isso resolvi voltar no dia seguinte de manhã e perguntar se alguém tinha visto um gatinho, já que tinha ouvido miar por ali no dia anterior. Responderam-me com ar displicente: “Sim, está no parque de areia.” Pedi para me deixarem entrar para te ir buscar.

Eras uma coisa preta, pequenina e magricela, muito refilona. Assopraste no caminho todo até casa enquanto te aninhavas nas minhas mãos, numa mistura de amor/ódio, salva-me/deixa-me em paz. Estavas desidratado, esfomeado, pulguento, e presumi, perdido da tua mãe. Era demasiada desventura para uma criatura tão pequenina. Terias 2 meses, mais coisa, menos coisa, disse a veterinária depois de te ver a fileira de dentinhos afiados e de te desparasitar de tudo o que era bicho. “Durava mais 24 horas” - disse ela. Nesse dia, percebi, roubei-te à morte.

Eras ainda um bebé atrevido quando te enrolaste nas alças finas de um vestido, pendurado nas costas de uma cadeira. Dessa vez foi a Finha, gata preta como tu e espertalhona, que chamou a Mãe e a levou até onde estavas. Uma tesoura, alças do vestido cortadas – não havia tempo para as desembaraçar – um vestido a menos, um gatinho vivo. Saldo final 2/7. Fazias, como todos os gatinhos bebés, muitas tropelias e calculo que tenhas gasto mais umas quantas vidas enquanto eu não estava a ver.


Estiveste doente a sério, pela primeira vez já tinhas 2 anos. As almofadinhas das patas inchavam como se tivessem bolhas de água e rebentavam, mesmo assim não desistias dos teus passeios. Conheceste nessa altura todos os veterinários da margem Sul, fizeste biopsias e análises até descobrirmos o que tinhas. Fazíamos turnos a tratar-te as patas, que besuntávamos de Betadine, que tu fazias questão de lamber. Parte do tratamento consistia em segurar-te o focinho para deixar o Betadine secar. Tempos depois apareceu-te uma mancha amarelada no lombo, como se o pêlo, o teu belo pêlo de urso, tivesse sido queimado. É uma sensação que nunca vou esquecer, o deslizar dos dedos da minha mão no teu pêlo; era tão denso, forte e macio, que acabou por te baptizar, passas-te a ser o meu gato-urso, “o meu ursinho”, era como eu te chamava. É uma sensação de tal forma embutida na minha memória, que agora, de cada vez que penso que não voltarei a fazer-te uma festa, parece que as minhas mãos ganharam uma certa percentagem de inutilidade, como se parte da sua função tivesse desaparecido com a tua morte… O teu pêlo era de tal modo denso que no Inverno, fazias lembrar o gorro dos guardas do palácio de Buckingham e houve alturas em que me apetecia pôr-te à volta do pescoço e usar-te como cachecol. Mas ao contrário da Coral, que me deixava fazer essas maluqueiras, tu não ias nisso. Demasiada palhaçada para um gato que se preze; no máximo dos máximos, fazer de manta de colo. Nada de abusos.


Habituei-me a fazer o caminho entre o portão e a porta de entrada em casa, contigo a enrolares-te nas minhas pernas, enquanto me ias contanto as desventuras do dia, ou da semana. Às vezes em monólogos tão extensos e expressivos, que acho até que seria alguma coisa deveras importante e detalhada; talvez uma nova experiência, como daquela vez em que dei contigo armado em papagaio, a dormir, encaixado entre ramos de uma videira - uma mancha negra no meio do verde. Foste um gato feliz, muito dócil, com uma adoração particular pela minha Mãe, acho que o Pai gostava de ti, pelo tanto que gostavas dela.

Não sabia que já tinhas esgotado as tuas sete vidas, mas suspeitei e lembro-me de olhar para ti no fim-de-semana antes de morreres e de pensar: “Um destes dias vais-me pregar uma partida e não vou ter tempo de me despedir de ti.” Gato malandro, foi mesmo assim, não me deste tempo. Só senti esse aperto no coração, de pensar que o nosso tempo partilhado poderia estar a chegar ao fim. Não te vi definhar, não tive de te dar comprimidos e injecções, não andei contigo dias a fio a caminho do veterinário, angustiada, não fui obrigada a dizer que te queria abater, poupaste-me a todo o sofrimento de te ver desaparecer aos bocadinhos como acontece a todas as criaturas que envelhecem e até nisso, meu gato-urso, foste bonzinho para os teus donos.

Sei que me vou sentar numa cadeira e esperar que te venhas deitar no meu colo, como fazias sempre que eu regressava à casa que me viu crescer. E quando começar a Primavera vou atravessar o jardim e esperar ver-te aparecer em equilibrismo nos ramos das videiras, ou encontrar-te a dormir de barriga para o ar naquelas tuas posições tão absurdamente artísticas. Sei que vou chamar-te algumas vezes por engano e corrigir para o nome de um outro gato, e sei que o engano me vai doer, como vão doer todos os hábitos que não vamos retomar, todos os rituais, que por não serem cumpridos, tornarão ainda mais viva a tua ausência…

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