sábado, 30 de março de 2013

E não é que vê mesmo?


Esta semana foi assim uma espécie de "Quem ri por último, nem sempre é retardado".

Desde o inicio do ano que tenho tido provas de que a vida dá muitas voltas e de que aquela máxima de que não é necessário mexer uma palha para prejudicar quem nos prejudica, é bem verdadeira. A minha avó tinha razão e não vale a pena sujar as mãos. O destino, ou karma, ou whatever, encarrega-se disso. E não é que me alegre com desgraças alheias, mas não consigo evitar um sorrisinho irónico quando vejo que efectivamente isso acontece, sem que eu tenha sequer pensado mais no assunto.

Aquela máxima do "Não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti", é para cumprir. O karma é como o Pai Natal, está sempre a ver e é bem mais mauzinho! Da próxima vez, pensem nisso!

sexta-feira, 22 de março de 2013

Primavera


Outro dia dei por mim a fazer contas. Nunca soube de cor os teus anos. Lembro-me que vieste depois da Primavera, num dia de muito calor. Vieste não, fui-te buscar. Ouvi-te miar, um dia, quando chegava a casa ao entardecer. Miavas alto, muito alto, um miado quase histérico. Estavas no recinto duma creche, metido não sei onde. Não te via, só te ouvia e o local estava fechado. Era a caminho de casa, por isso resolvi voltar no dia seguinte de manhã e perguntar se alguém tinha visto um gatinho, já que tinha ouvido miar por ali no dia anterior. Responderam-me com ar displicente: “Sim, está no parque de areia.” Pedi para me deixarem entrar para te ir buscar.

Eras uma coisa preta, pequenina e magricela, muito refilona. Assopraste no caminho todo até casa enquanto te aninhavas nas minhas mãos, numa mistura de amor/ódio, salva-me/deixa-me em paz. Estavas desidratado, esfomeado, pulguento, e presumi, perdido da tua mãe. Era demasiada desventura para uma criatura tão pequenina. Terias 2 meses, mais coisa, menos coisa, disse a veterinária depois de te ver a fileira de dentinhos afiados e de te desparasitar de tudo o que era bicho. “Durava mais 24 horas” - disse ela. Nesse dia, percebi, roubei-te à morte.

Eras ainda um bebé atrevido quando te enrolaste nas alças finas de um vestido, pendurado nas costas de uma cadeira. Dessa vez foi a Finha, gata preta como tu e espertalhona, que chamou a Mãe e a levou até onde estavas. Uma tesoura, alças do vestido cortadas – não havia tempo para as desembaraçar – um vestido a menos, um gatinho vivo. Saldo final 2/7. Fazias, como todos os gatinhos bebés, muitas tropelias e calculo que tenhas gasto mais umas quantas vidas enquanto eu não estava a ver.


Estiveste doente a sério, pela primeira vez já tinhas 2 anos. As almofadinhas das patas inchavam como se tivessem bolhas de água e rebentavam, mesmo assim não desistias dos teus passeios. Conheceste nessa altura todos os veterinários da margem Sul, fizeste biopsias e análises até descobrirmos o que tinhas. Fazíamos turnos a tratar-te as patas, que besuntávamos de Betadine, que tu fazias questão de lamber. Parte do tratamento consistia em segurar-te o focinho para deixar o Betadine secar. Tempos depois apareceu-te uma mancha amarelada no lombo, como se o pêlo, o teu belo pêlo de urso, tivesse sido queimado. É uma sensação que nunca vou esquecer, o deslizar dos dedos da minha mão no teu pêlo; era tão denso, forte e macio, que acabou por te baptizar, passas-te a ser o meu gato-urso, “o meu ursinho”, era como eu te chamava. É uma sensação de tal forma embutida na minha memória, que agora, de cada vez que penso que não voltarei a fazer-te uma festa, parece que as minhas mãos ganharam uma certa percentagem de inutilidade, como se parte da sua função tivesse desaparecido com a tua morte… O teu pêlo era de tal modo denso que no Inverno, fazias lembrar o gorro dos guardas do palácio de Buckingham e houve alturas em que me apetecia pôr-te à volta do pescoço e usar-te como cachecol. Mas ao contrário da Coral, que me deixava fazer essas maluqueiras, tu não ias nisso. Demasiada palhaçada para um gato que se preze; no máximo dos máximos, fazer de manta de colo. Nada de abusos.


Habituei-me a fazer o caminho entre o portão e a porta de entrada em casa, contigo a enrolares-te nas minhas pernas, enquanto me ias contanto as desventuras do dia, ou da semana. Às vezes em monólogos tão extensos e expressivos, que acho até que seria alguma coisa deveras importante e detalhada; talvez uma nova experiência, como daquela vez em que dei contigo armado em papagaio, a dormir, encaixado entre ramos de uma videira - uma mancha negra no meio do verde. Foste um gato feliz, muito dócil, com uma adoração particular pela minha Mãe, acho que o Pai gostava de ti, pelo tanto que gostavas dela.

Não sabia que já tinhas esgotado as tuas sete vidas, mas suspeitei e lembro-me de olhar para ti no fim-de-semana antes de morreres e de pensar: “Um destes dias vais-me pregar uma partida e não vou ter tempo de me despedir de ti.” Gato malandro, foi mesmo assim, não me deste tempo. Só senti esse aperto no coração, de pensar que o nosso tempo partilhado poderia estar a chegar ao fim. Não te vi definhar, não tive de te dar comprimidos e injecções, não andei contigo dias a fio a caminho do veterinário, angustiada, não fui obrigada a dizer que te queria abater, poupaste-me a todo o sofrimento de te ver desaparecer aos bocadinhos como acontece a todas as criaturas que envelhecem e até nisso, meu gato-urso, foste bonzinho para os teus donos.

Sei que me vou sentar numa cadeira e esperar que te venhas deitar no meu colo, como fazias sempre que eu regressava à casa que me viu crescer. E quando começar a Primavera vou atravessar o jardim e esperar ver-te aparecer em equilibrismo nos ramos das videiras, ou encontrar-te a dormir de barriga para o ar naquelas tuas posições tão absurdamente artísticas. Sei que vou chamar-te algumas vezes por engano e corrigir para o nome de um outro gato, e sei que o engano me vai doer, como vão doer todos os hábitos que não vamos retomar, todos os rituais, que por não serem cumpridos, tornarão ainda mais viva a tua ausência…